segunda-feira, 30 de março de 2015

Matriz de Referência de Língua Portuguesa - SPAECE - Ensino Médio


Seguem os descritores:

D1 – Localizar informação explícita.
D2 – Inferir informação em texto verbal.
D3 – Inferir o sentido de palavra ou expressão.
D4 – Interpretar textos não verbais e textos que articulam elementos verbais e não verbais.
D5 – Identificar o tema ou assunto de um texto.
D6 – Distinguir fato de opinião relativa ao fato.
D7 – Diferenciar a informação principal das secundárias em um texto.
D8 – Formular hipóteses sobre o conteúdo do texto.
D9 – Reconhecer gênero discursivo.
D10 – Identificar o propósito comunicativo em diferentes gêneros.
D11 – Reconhecer os elementos que compõem uma narrativa e o conflito gerador.
D12 – Identificar semelhanças e/ou diferenças de ideias e opiniões na comparação entre textos.
D13 – Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos de um mesmo tema.
D14 – Reconhecer as relações entre partes de um texto identificando os recursos coesivos que contribuem para sua continuidade.
D15 – Identificar a tese de um texto.
D16 – Estabelecer relação entre tese e os argumentos oferecidos para sustentá-la.
D17 – Reconhecer o sentido das relações lógico-discursivas marcadas por conjunções, advérbios etc.
D18 – Reconhecer o sentido do texto e suas partes sem a presença de marcas coesivas.
D19 – Reconhecer o efeito de sentido decorrente da escolha de palavras, frases ou expressões.
D20 – Identificar o efeito de sentido decorrente do uso da pontuação e de outras notações.
D21 – Reconhecer o efeito decorrente do emprego de recursos estilísticos e morfossintáticos.
D22 – Reconhecer efeitos de humor e ironia.
D23 – Identificar os níveis de linguagem e/ou as marcas linguísticas que evidenciam locutor e/ou interlocutor.




http://www.spaece.caedufjf.net/wp-content/uploads/2014/11/SPAECE-RP-LP-EM-WEB.pdf

Dizem que os cães veem coisas, de Moreira Campos


Ela chegou diáfana, transparente, no vestido branco que lhe descia até os pés calçados pelas ricas sandálias de pluma. Ninguém lhe ouviu os passos. Sentou-se à beira da grande piscina, cruzando as pernas longas. Chegou antiqüíssima, atual e eterna, com a sua cara de máscara. Moldada em gesso? Apenas uma presença, porque pousou como uma sombra. Mas por um fragmento de tempo, um quase nada, reinou entre todos um silêncio largo, que se estendeu pelo vasto terreno murado da mansão ensombrada pelas árvores, dominou a enorme piscina e emudeceu as próprias crianças pajeadas pelas babás de aventais bordados, e vejam que as crianças são indóceis.
              Um presságio.
              Fragmento de tempo apenas, porque o homem gordo, de ventre imenso, saltou dentro da piscina com o copo de uísque na mão. Espadanou água por todos os lados, a piscina transbordou. Muitos se molharam, outros saltaram da cadeira de lona.
              - Bruto! – disse alguém íntimo, sem que ele se aborrecesse, bêbado.
              A onda de água despejou-se sobre Ela, que não se moveu: era trespassável e transparente. Floco de névoa pronto a esvoaçar. Permaneceu parada, a cara imóvel, nenhum ricto. Apenas parecia consultar no pulso um relógio invisível, para marcar o tempo. O homem de ventre enorme já estava à beira da piscina, gotejante e trôpego, para uma nova dose de uísque, os dedos graúdos catando no balde os cubos de gelo. Mulheres seminuas, o cordão do biquíni, as nádegas reluzentes de sol e gotas dágua. As rodas, as conversas, os garçons que circulavam, as bandejas de salgadinhos.
              Uns óculos escuros sofisticados no sutiã mínimo:
              - Por favor.
              O garçom atendia, solicito, perdendo os olhos ávidos nos seios mal contidos, oferecidos e inatingíveis.
              - Obrigada.
              O garçom mantinha a dignidade, ereto. A menina chegou e segurou a mãe pelo queixo:
              - Mãe-ê, quero uma coca-cola.
              A mãe não lhe dava atenção em flerte com o recente campeão de vôlei, uma estrutura de tórax (a mãe da menina contrariava-se apenas com o tufo de pêlos que ele tinha no peito, quase imoral). A menina impacientava-se:
              - Mãe-ê, uma coca-cola.
              - Deixa de ser chata!
              O campeão levantou-se para apanhar o refrigerante. Em roda mais distante conversavam os homens graves: a última medida do governo, a crise econômica.
              - O país vai à bancarrota.
              - Vai o quê?
              - A bancarrota.
              - Fazia tempo que eu não ouvia essa palavra.
              - Mas vai.
              Aceitava-se a bancarrota sem muita convicção. Na grande varanda, as senhoras grisalhas e indesnudáveis, pulseiras tilintantes na flacidez dos braços, discutiam os novos valores morais e comentavam o recente desquite.
              - A menina dela não tem um ano de casada.
              - É a segunda que se separa.
              - Como?
              - A segunda.
              Aniversário da dona da mansão, que se acompanhava ao violão com graça, aplaudida pelos que estavam em volta. O garçom (ou maitre, porque era solene) curvou-se ao seu ouvido. Ela se livrou do violão, levantou-se e bateu palmas chamando todos para o almoço à americana, as mesas sob as árvores. Cada um apanhou o seu prato, formaram-se as filas, o homem gentil cedeu lugar a umas nádegas rijas, cortadas sempre pelo cordão do biquíni:
              - Faz favor.
              - Obrigada.
              Os cães de raça latiam e uivavam desesperadamente nos canis (e dizem que os cães vêem coisas). Foi preciso que o tratador viesse acalmá-los, embora eles rodassem sobre si mesmos e rosnassem. A distância, a piscina quase olímpica, agora deserta: toalhas esquecidas. O vidro de bronzeador, o cinzeiro sobre a mesinha cheio de pontas de cigarro marcadas de batom.
              As filas. Alguém tangeu o gato que lutava com um pedaço de osso. Lenita fez o prato do marido, preparou também o seu. Mordia a fatia de peru com farofa, quando se lembrou do filho:
              - Cadê o Netinho?
              Certa angústia na voz. Chamou o marido, gritou pela babá, que se distraía com as outras na varanda. Olhos espantados e repentino silêncio talvez maior de qualquer outro. Refeições suspensas, uma senhora mantinha no ar o garfo cheio. Tentavam segurar Lenita. oEla se desvencilhava:
              - Cadê o Netinho? Cadê?
              As águas da grande piscina eram tranqüilas, apenas levemente franjadas pelo vento. Boiava sobre elas uma carteira de cigarros vazia. Mas a moça que se aproximava parecia divisar um corpo no fundo, preso à escada. Voltaram a afastar Lenita, o marido a envolveu nos braços possantes, talvez procurando refúgio também. O campeão de vôlei atirou-se à piscina e veio à tona sacudindo com a cabeça os cabelos longos: trazia sob o braço um corpo inerme, flácido, de apenas quatro anos e de cabelos louros e gotejantes.
              O médico novo, de calção, tentou a respiração artificial, e boca-a-boca (os lábios de Netinho estavam arroxeados), e levantou-se sem palavras e sem olhar para ninguém. Lenita soltou-se e agarrou-se ao filho:
              - Acorde, acorde! Pelo amor de Deus, acorde?
              Conseguiram afastá-la mais de uma vez, quase desmaiou. A amiga limpava-lhe com os dedos a sobra de farofa que se grudava ao seu rosto. Os cães de raça voltavam a a latir desesperadamente, e dizem que os cães vêem coisas.
              Lenita ficou para sempre com a sensação do corpo inerte e mole entre os braços. Uma marca, uma presença, que procurava desfazer com as mãos. Cabelos louros e gotejantes. Às vezes, ela despertava na noite:
              - Acorde, acorde!
              A presença também daquele instante de silencio que pesara sobre a piscina. Um pressentimento apenas? Precisamente o momento em que Ela chegara, transparente e invisível, e se a senhora à beira da piscina, cruzando as pernas longas, antiqüíssima, atual e eterna.
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Fonte: CAMPOS, José Maria Moreira. Dizem que os cães vêem coisas. Fortaleza: Edições UFC, 1987.

Moça com flor na boca, de Airton Monte


A esta hora tardia em que escrevo, o dia de amanhã já se anuncia no melancólico cantar de um galo insone, exilado na grande cidade. Claro que o mundo não pára enquanto dormimos. As coisas continuam acontecendo, seguindo seu próprio ritmo.

Quem sabe, em algum lugar, neste determinado momento, um bebê tenha acabado de nascer e a humanidade se engrandeceu mais um pouco, envolta no doce mistério da carne, como se nós todos milagrosamente ressurgíssemos do nada.

Na mesma escala do tempo, num botequim da periferia, compadre Raimundo matou compadre Francisco por causa de uma dose de cachaça pedida e recusada. Em uma cobertura luxuosa da Avenida Beira-Mar, um marido (respeitável cidadão) espancou outra vez a mulher só porque ela abraçou e beijou um velho amigo de faculdade. Trancado no quarto, olhos fixos na tela do computador, o filho de 5 anos sente o ódio envenenando sua dolorosa meninice.

Já no centro da cidade, que jamais dorme, maus meninos de boas famílias ateiam fogo a um mendigo bêbado, só para tornar a noite menos chata. Pela internet, um casal ainda jovem se ama por correspondência e usa nomes falsos e troca retratos fictícios.

Num sobradinho branco, de janelinhas azuis recém-pintadas, à beira do mar, um homem e uma mulher celebram no altar de Vênus sob as bênçãos de Afrodite. Num terreno baldio, uma criança é estuprada e morta pelo vendedor de picolés.

Na Praia de Iracema, as vendedoras de flores poetizam a noite sórdida. Dentro de um mesmo universo multifacetado, há, ao mesmo tempo, uma lua-de-mel, um velório de pai rico onde os filhos choram com advogado ao lado e com firma reconhecida. Ah, quantos dramas, quantas tragédias acontecendo agora enquanto escrevo, inclusive uma canção que se solta pelo ar, uma estrela cadente, uma nuvem esculpida caprichosamente pelo vento, um homem solitário recitando poemas de amor e seu coração gritando vida, meus olhos sonhando com a mágica visão de uma moça linda, com um sorriso de jardim suspenso da Babilônia e, certamente, irremediavelmente com uma flor na boca, que o poeta colherá inevitavelmente, imune ao veneno de todos os espinhos.(p. 7 e 8 )

Crônica extraída do livro Moça com flor na boca.