A esta hora tardia em que escrevo, o dia de amanhã já se anuncia no melancólico cantar de um galo insone, exilado na grande cidade. Claro que o mundo não pára enquanto dormimos. As coisas continuam acontecendo, seguindo seu próprio ritmo.
Quem sabe, em algum lugar, neste determinado momento, um bebê tenha acabado de nascer e a humanidade se engrandeceu mais um pouco, envolta no doce mistério da carne, como se nós todos milagrosamente ressurgíssemos do nada.
Na mesma escala do tempo, num botequim da periferia, compadre Raimundo matou compadre Francisco por causa de uma dose de cachaça pedida e recusada. Em uma cobertura luxuosa da Avenida Beira-Mar, um marido (respeitável cidadão) espancou outra vez a mulher só porque ela abraçou e beijou um velho amigo de faculdade. Trancado no quarto, olhos fixos na tela do computador, o filho de 5 anos sente o ódio envenenando sua dolorosa meninice.
Já no centro da cidade, que jamais dorme, maus meninos de boas famílias ateiam fogo a um mendigo bêbado, só para tornar a noite menos chata. Pela internet, um casal ainda jovem se ama por correspondência e usa nomes falsos e troca retratos fictícios.
Num sobradinho branco, de janelinhas azuis recém-pintadas, à beira do mar, um homem e uma mulher celebram no altar de Vênus sob as bênçãos de Afrodite. Num terreno baldio, uma criança é estuprada e morta pelo vendedor de picolés.
Na Praia de Iracema, as vendedoras de flores poetizam a noite sórdida. Dentro de um mesmo universo multifacetado, há, ao mesmo tempo, uma lua-de-mel, um velório de pai rico onde os filhos choram com advogado ao lado e com firma reconhecida. Ah, quantos dramas, quantas tragédias acontecendo agora enquanto escrevo, inclusive uma canção que se solta pelo ar, uma estrela cadente, uma nuvem esculpida caprichosamente pelo vento, um homem solitário recitando poemas de amor e seu coração gritando vida, meus olhos sonhando com a mágica visão de uma moça linda, com um sorriso de jardim suspenso da Babilônia e, certamente, irremediavelmente com uma flor na boca, que o poeta colherá inevitavelmente, imune ao veneno de todos os espinhos.(p. 7 e 8 )
Crônica extraída do livro Moça com flor na boca.
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